sábado, 2 de novembro de 2013

GEORGE PEREZ,CRIADOR VERSÁTIL.

George Pérez, o desenhista de ‘Crise nas infinitas terras’, faz um balanço de 40 anos de quadrinhos

Rodrigo Fonseca (Email)
Publicado:
Seja herói ou vilão, todo aquele que é amarrado pelo laço da Mulher-Maravilha é obrigado a falar a verdade, doa a quem doer, e George Pérez, o responsável pela revitalização editorial da amazona nas HQs da década de 1980, aprendeu com ela o valor de ser íntegro. Por isso, o desenhista e escritor nova-iorquino de origem porto-riquenha, que vem ao Brasil no dia 15, para participar do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), em Belo Horizonte, diz sem dó:
— Os quadrinhos deixaram de se preocupar em construir uma mitologia e passaram a existir apenas para ceder matéria-prima para o cinema e os desenhos animados. Não se criam mais personagens por razões artísticas. Hoje, os gibis são criados por interesses monetários na indústria audiovisual. É por isso que, há 20 anos, eu parei de ler HQs, embora ainda viva delas — admite Pérez ao GLOBO por telefone, de sua casa, em Orlando, na Flórida.
Lá ele se recupera de uma cirurgia na retina, a tempo de viajar para BH, onde fala no dia 16 no FIQ (evento sediado de 13 a 17 de novembro no Espaço Cultural Serraria Souza Pinto), comemorando seus 40 anos de carreira. Mas suas palavras niilistas podem desapontar os fãs brasileiros. Sobretudo quem, há duas semanas, desde o anúncio das atrações do FIQ, se estapeia por uma vaga em seu colóquio, atrás de um autógrafo do artista responsável por fenômenos de venda como “Crise nas infinitas terras” (1985).
— Atualmente não se vê mais nenhum personagem de HQ sorrir. Tudo é sombrio, sem leveza. Até o Super-Homem perdeu sua inocência — lamenta Pérez, que contabiliza em seu currículo quatro Eagle Awards, prêmio inglês dado a quadrinistas de verve autoral.
Hoje um senhor de 59 anos, engajado em participar das peças do grupo de teatro comunitário de sua vizinhança, ele vive com a instrutora de dança Carol Flynn, que policia os hábitos do marido para controlar seu diabetes e o arrasta para os eventos onde apresenta suas coreografias. Entre os amigos de Carol, poucos sabem que Pérez foi um artista de rentabilidade milionária para a editora DC Comics, nem que ele foi o responsável por fazer da série “Os Novos Titãs” um rival comercial para os gibis dos X-Men de 1980 a 1984. Nessa época, deu forma a heróis que ficaram célebres, como Cyborg e Asa Noturna.
— O que mais me impressionava em Pérez era seu detalhismo e a maneira como ele representou o início do processo de erotização da editora DC Comics — diz o cineasta Claudio Torres (diretor de “A mulher invisível”), fã de HQs. — Nos Titãs, por exemplo, seu Asa Noturna dormia com a gostosa da (heroína alienígena) Estelar, ambos pelados, o que não era nada comum nos gibis de linha dos anos 1980.
Realismo sem estilização
À frente dos Titãs, Pérez desenvolveu um estilo próprio, que importou para sua experiência posterior na Marvel, em 1998, ilustrando “Os Vingadores”.
— Ele é herdeiro de uma estirpe de desenhistas de traços clássicos, que tentam seguir um modelo mais realista e menos estilizado, como José Luis García-Lopez e Neal Adams. E tem uma capacidade invejável de retratar cenas com um número de personagens absurdamente grande, sem descuidar dos detalhes — explica o pesquisador Sidney Gusman, editor do site “Universo HQ”, leitura obrigatória no setor.
Mais cultuado quadrinista do Brasil, Lourenço Mutarelli resume em uma palavra — “Impressionante!” — a estética de Pérez, ao vasculhar os desenhos feitos pelo americano para a saga “Crise nas infinitas terras”.
— É muito difícil para um quadrinista harmonizar o uso de cor em um desenho tão cheio de elementos quanto o dele. Mas Pérez encontra um equilíbrio no excesso. E surpreende ver como ele combina vários planos em um mesmo quadro, o que dá a seu desenho multiperspectivismo — elogia Mutarelli.
Em 1985, a fim de comemorar os 50 anos da DC, Pérez e o roteirista Marv Wolfman (seu parceiro em “Os Novos Titãs”) tiveram a ideia de desenvolver uma saga que pudesse zerar toda a cronologia da editora, a partir da chegada de um vilão, o Antimonitor, capaz de destruir universos com uma energia chamada antimatéria. Assim nasceu “Crise...”, cujo êxito abriu precedentes para que a DC investisse em projetos mais ousados como “O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller, e “Watchmen”, de Alan Moore, e topasse reformular as origens de seus maiores heróis, dando a Pérez o comando da nova série da Mulher-Maravilha, em 1987, que, de cara, virou cult nas bancas.
— “Crise...” foi uma desculpa que dei à DC para ter a oportunidade de desenhar todos os super-heróis que cresci lendo de uma só vez, indo de clássicos de guerra como o Sargento Rock a figuras pós-modernas como os Homens-Metálicos, passando pelo Batman. O sucesso de vendas fez daquela experiência algo histórico e me deu passe-livre para criar — orgulha-se Pérez, que, até hoje, desenha à mão, usando computador apenas para colorir. — Gosto do prazer de desfilar a ponta do grafite sobre o papel.
Há um ano, ele rompeu os laços com a editora DC Comics, por divergências criativas na autoria da revista “Superman”, e sua jornada de trabalho anda mais lenta. Ele também está afastado da Marvel, onde profissionalizou-se em 1973 emprestando seu lápis aos gibis do vigilante Deathlok. Atualmente, sua rotina anda restrita à feitura de capas para o Boom Studios, onde trabalha desde julho, e para o qual desenvolve uma minissérie, “She-Devils”, sobre um bando de guerreiras místicas. Ninguém sabe ao certo do que tratará a nova empreitada de Pérez. Mas, na indústria, ela já atiça a expectativa de lucros das gibiterias dos EUA.
— Essa série vem de um fanzine que criei nos anos 1970. Como eu não tenho mais compromisso com a linha editorial da DC ou da Marvel, posso usar a liberdade criativa na plenitude para falar de mulheres poderosas que se deslocam por diferentes eras — diz Pérez, que sempre teve uma predileção pelas figuras femininas.
Já nos “Titãs”, a maneira como ele e Marv Wolfman expressavam a subjetividade de heroínas como Estelar, Ravena e Terra quebrava com o machismo vigente nas HQs.
— Eu tenho muito mais amizade com mulheres do que com homens. Aprendi que, para retratá-las com honestidade nos gibis, era necessário ouvir experiências femininas da vida real para entender como as moças pensam e agem, sem incorrer em discursos políticos. Meu esforço era não retratar as mulheres a partir de perspectivas masculinas, que só serviriam para criar Super-Homens de saia — diz Pérez.
Essa preocupação em quebrar arquétipos sexistas foi o segredo de seu trabalho em “Mulher-Maravilha”, que ele desenhava e escrevia em parceria com Len Wein, o criador de Wolverine. A partir dela, ele trouxe o misticismo dos deuses gregos para os quadrinhos, buscando elementos visuais anatômicos da arte greco-latino e o espírito trágico do teatro daquela civilização.
— Verdadeiro demiurgo da narrativa gráfica, Pérez recriou a Mulher-Maravilha de um punhado de barro (é assim que a heroína surge na origem idealizada pelo artista) e fez dela a personagem feminina mais icônica da DC Comics — diz o designer gráfico e professor da Comunicação Aristides Corrêa Dutra, pesquisador da estética das HQs. — Seu trabalho de anatomia é mais clássico, com músculos delineados, contornos nítidos e poucas sombras chapadas. Suas figuras, expressivas e vigorosas, remetem à anatomia dinâmica de quadrinistas lendários como Burne Hogarth (de “Tarzan”).
A família como foco criador
Cheio de curiosidade sobre o Brasil, Pérez integra um coletivo de pesos-pesados internacionais de quadrinhos no FIQ, a começar por outros dois campeões de vendas: o desenhista de origem alemã Klaus Janson e o argentino Eduardo Risso. Janson ganhou prestígio por ter trabalhado como arte-finalista de Frank Miller em “Cavaleiro das Trevas”, e Risso ficou cultuado por “100 balas”. Virão ainda o ilustrador e animador congolês Jérémie Nsing (“O conto africano”), o cartunista alemão Felix “Flix” Görmann (“Quando lá tinha o muro”) e o desenhista turco Yildiray Cinar (“Nothingface”). Mas todos querem Pérez.
— Como ele é uma lenda do quadrinho mainstream, já esperamos que a mesa dele seja a mais assediada — afirma Afonso Andrade, coordenador de quadrinhos da Fundação Municipal de Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte, responsável pelo FIQ.
Embora não tenha intimidade com a produção brasileira, Pérez chega a Minas Gerais com uma homilia artística para compartilhar com seu fã-clube: ele quer apontar as tentações em que o mercado de HQs caiu.
— A maior delas foi a falta de percepção para o fato de que, por baixo da fantasia de um super-herói, existe um ser humano cheio de problemas, carente de amizade, com questões tão reais quanto as que qualquer um de nós enfrenta. A base que Marv Wolfman e eu levamos para os Titãs era: antes de serem super-heróis, esses personagens precisam ser pessoas de verdade. Portanto, não vamos idealizá-los como uma superequipe, vamos idealizá-los como uma família. Essa noção de família se perdeu nas HQs — diz Pérez. — É preciso reaver esses valores. Se não, tudo é só oportunismo comercial.

Nenhum comentário:

Postar um comentário